terça-feira, 23 de maio de 2006

Conhecimento X Sabedoria

Certa vez um bom amigo e eu estávamos postados às margens do Rio Cuiabá com nossas varas de fibra de carbono, nossos molinetes e iscas artificiais regalando-nos do prazer de desfrutar um dia de pesca esportiva junto à natureza exuberante daquela região.
Mal havíamos nos preparado para o desfrute e diante de nós passou uma tosca embarcação de madeira cunhada a machadinha na tora de uma árvore. À moda indígena tinha um velho e mulato caboclo conduzindo a embarcação com um remo entalhado.
Mesmo muito magro o peso do velho impunha ao barco um desnível que na linha d’água de modo que a pequena criança postada à proa parecia mais um adorno do que um tripulante.
- Diiia! – cumprimentou o velho com voz contida e sotaque carregado.
- BOM DIA! – respondemos quase em uníssono com nossas vozes carregadas de surpresa de ver alguém com disposição suficiente para arriscar uma manhã tão linda de domingo numa canoa lenta e insegura.
Quando pouco depois o barco sumiu por detrás da vegetação ribeirinha olhamo-nos com um misto de pena e desprezo por aquela criatura sem cultura que almejava enfrentar a natureza munida apenas de parcos e rústicos equipamentos.
Após algum tempo nossa euforia matinal já estava amortecida pelo sol que então já se fazia alto. Nosso acervo de piadas tolas esvaíra-se na velocidade inversa com que aumentava nosso “estoque” de peixes que agora contabilizava a irrisória quantia de um raquítico "piau" e um pequeno "lambari".
Neste momento, desta vez descendo o rio, novamente a canoa passou. Sem surpresa pude reparar melhor. O homem não era assim tão velho. Marcado pela dura lida no campo sim, mas a pele vincada era mais uma mostra de que sua aparente magreza era mais um corpo definido e modelado pelo incessante trabalho físico do que pela falta de uma dieta mais rica.
O jovem à frente do barco era sem dúvida muito jovem, mas trazia no rosto a expressão de quem já conseguia enxergar o horizonte não mais com os olhos sonhadores de uma criança, mas com lucidez e esperança.
Meu amigo não pode conter sua curiosidade e perguntou: - E então, como foi a pescaria?
- Mal. - respondeu o barqueiro com certo tom de desânimo na voz – Só pegamos um "Pintado" e dois "Pacus".
Não dissemos mais nenhuma palavra. Ficamos apenas olhando o barco sumir na curva do rio. E quando nos fitamos novamente só fomos capazes de rir abundantemente da ironia da situação. Recolhemos nosso orgulho esparramado pelo chão junto com as tralhas de pesca e fomos nos dedicar a tarefas mais afeitas a nossa competência, quer seja, beber umas cervejas, comer um churrasco e rir de nosso inútil conhecimento diante daquela demonstração de sabedoria.

Um comentário:

Francisco Charneca disse...

Um dia também aprendi a diferença entre conhecimento e sabedoria. Tinha 18 anos, acabado de entrar na vetusta Universidade seiscentista da cidade de Évora em Portugal, para nela fazer o Curso Superior de Arquitetura Paisagista. Estava passeando no campo quando encontrei um pastor guardando ovelhas. Era funcionário do único agricultor cujas terras não tinham sido ocupadas pelos camponeses revolucionários da reforma agrária em Portugal, ajudados pelos militares do Movimento das Forças Armadas. Os trabalhadores da herdade (fazenda), cercaram a sede e evitaram a ocupação.
Eu era um jovem politizado.
Lera o Capital de Karl Marx, conhecia o pensamento de Engels e Lenin. Liderara junto com outros colegas a primeira manifestação de estudantes no Moçambique pós-revolução portuguesa e militara clandestinamente, embora sem filiação, no PCP - Partido Comunista Português, correndo o risco de ser preso.
Ali estava um ser ignorante na minha frente... um pastor analfabeto que defendia o patrão latifundiário.
Com toda a capacidade dialética do meu treinado marxismo cerquei ideiológicamente o homem. Levei-o até a um beco sem saída intelectual... estava prestes a conseguir a minha presa - mais um convertido para a causa!
Quando lhe fiz a derradeira pergunta que me levaria à vitória, retorquiu-me:
"Sabe cumpade (na minha terra há o hábito de chamar compadre uns aos outros), eu cá penso assim - Não me incomoda que haja quem tenha um armazém cheio de pão, se todos tiverem o pão que precisam"
...
Seguiu-se no meu íntimo um silêncio intelectual que acredito seja igual ao do desfalecimento. Senti-me verdadeiramente ignorante!!! E ele, analfabeto - era um sábio.

Nesse dia queimei no meu íntimo todos os dogmas políticos na fogueira da minha ignorância, e fui em busca de uma ideologia onde coubesse a sabedoria do analfabeto.
Não achei até hoje! Pelo menos praticada pelos políticos.

Francisco Charneca
Artista Plástico
Cuiabá-MT